YOGA E O JOGO DA VIDA OU BRINCAR DE VIVER?
- Marcelo Augusti

- 4 de ago.
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Atualizado: 19 de ago.

As criações divinas são todas maravilhosas e parecem inconcebíveis, pois, mesmo os grandes esforços de muitos eruditos, não se mostraram suficientes para compreendê-las.
(Srimad Bhagavatam, Canto II, Cap. 4, Vs. 8)
Uns dizem que a vida é um jogo e que o mundo é um palco. Nesse palco, uns dizem que somos como fantoches, outros afirmam que não passamos de marionetes.
Nos dois casos, seríamos conduzidos pelas “mãos invisíveis” do destino e do sobrenatural – sejam deuses ou demônios que nos manipulam, não importa – e não tendo qualquer domínio sobre o que fazemos e o que nos acontece.
Há outros que afirmam que, no palco da vida, cada indivíduo é o autor do roteiro de sua existência terrena, bem como o ator – e o personagem – que interpreta seus próprios dramas, tragédias e comédias ao longo da vida.
Mas, seria mesmo a vida um jogo? Se, sim, que tipo de jogo? Um jogo de sobrevivência, decerto, diriam alguns, onde somos testados, medidos e avaliados em nossa capacidade de resistência, e em nossa habilidade de resiliência, de não desistir nunca, retroceder jamais.
Seja como ou o quê for, esse jogo da vida parece se definir pelo conjunto de nossas escolhas, principalmente quando tais escolhas são decisões tomadas em momentos de crise, medo, ira, grandes paixões ou empolgações.
Diante disso, podemos caracterizar o jogo da vida como um jogo de ilusão. Pois, se nossas escolhas são determinadas por momentos de falta de clareza, então, nos iludimos em nossas decisões e, por consequência, nossas escolhas, diante do que a vida nos apresenta, serão as piores possíveis.
A ilusão é um erro de percepção ou de entendimento, uma falta de clareza, que nos leva a uma interpretação equivocada da vida. Pois, se a vida é um jogo, e este se caracteriza pela ilusão, é porque tentamos falsear a realidade, para que ela atenda aos nossos desejos, caprichos e vaidades mais egoístas.
O sociólogo francês Roger Caillois, em sua obra intitulada Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem, publicado originalmente em 1958, elaborou um estudo minucioso sobre os tipos de jogos aos quais as culturas e sociedades se dedicaram, categorizando-os.
Um desses tipos de jogos, Caillois denominou, exatamente, de mimicry ou ilusão. Segundo Caillois, o jogo de ilusão envolve a suspensão da realidade e a criação de um mundo fictício, onde o jogador assume um papel específico e se entrega à fantasia do momento.
Mimicry, ou mimese é, pois, a categoria que se refere aos jogos de interpretação de papéis e simulação. Nesses jogos, o jogador abandona sua identidade real para assumir outra, interagindo com o ambiente e os demais jogadores em um mundo criado artificialmente e compartilhado pelos participantes.
Na vida, tal como no jogo de ilusão, muitas vezes construímos universos paralelos, onde tentamos impor nossas próprias regras de atuação e lógica de merecimento e punição. Interpretamos os personagens que criamos, e damos a eles características e uma história de vida que compartilhamos com outros.
E então, nos entregamos às experiências ilusórias desse simulacro, como se tudo fosse muito real e verdadeiro. Simulacro é uma imitação, uma aparência enganosa ou uma cópia mal feita; é aquilo que parece, mas não é. O simulacro caracteriza-se pelo fingimento e pela dissimulação.
Entretanto, no jogo de ilusões de Caillois, estamos conscientes de que a experiência que ele nos proporciona é apenas fictícia, pois a realidade não foi alterada, não nos descolamos dela, ao qual se mantém intacta. Porém, ao fazermos da vida um simulacro, tomamos a simulação, como algo real e verdadeiro.
Quando fazemos da vida um jogo de ilusões, e a ele nos entregamos, como algo real e verdadeiro, ultrapassamos a tênue linha entre o risco e o perigo.
Risco é uma incerteza, uma probabilidade de insucesso, um evento que pode ou não ocorrer, e ao qual temos apenas uma ilusão de estar no controle.
Perigo, por sua vez, é uma situação iminente de ameaça real a integridade física e/ou psicológica, algo que, certamente, irá ocorrer e nada poderá deter. No perigo, a ilusão do controle é fatal.
O risco e o perigo de fazer da vida um jogo de ilusões é que, ao tomar a fantasia como realidade, nos apegamos ao universo ficcional que criamos e, então, mergulhamos no improcedente, nas quimeras e nas presunções, abandonando por completo o discernimento entre a realidade e a ficção.
Esse jogo da vida é constituído de fakes news, propaganda enganosa, puro suco de marketing que nos persuade a adquirir tudo aquilo que não necessitamos, e que nos mantém atados às ilusões da conquista de superioridade (de poder, de riqueza material, fama, sucesso, controle social).
Então, quando a ele submetidos, o jogo se impõe, com suas regras mais severas e todas as suas aparências - tanto as mais atrativas, quanto as mais pavorosas - e a vida passa a ser um tédio, uma tristeza, um sofrimento, uma angústia, uma ansiedade e uma busca sem fim por conquistas pessoais. Se as ilusões do jogo nos entrelaçam, é difícil delas escaparmos.
Todavia, e se a vida, ao invés de um jogo, não passasse apenas de uma brincadeira? A vida como um momento de descontração, um passatempo, algo a ser apreciado. Seria, então, a vida, a oportunidade que temos para, de fato, apenas viver, e nada mais além disso?
Vejamos essa questão. O Brahmasutra 2.1.33, diz: lokavat tu līlākaivalyam ("A experiência que ocorre no dia-a-dia, é apenas līlā").
Pode-se traduzir līlā como "brincadeira divina". Em oposição ao jogo, que implica em competição entre os envolvidos, o elemento básico da brincadeira é a cooperação.
Quando fazemos da vida um jogo, estamos a competir com outros seres (por qualquer coisa, em qualquer lugar, em tempo integral) e, em uma escala onde a ignorância se exacerba, competimos até contra a natureza, tentando aniquilá-la.
Porém, quando a vida é apenas uma brincadeira - līlā - ela é a confirmação de que a existência não se vale de objetivos a serem alcançados, de conquistas pessoais e tampouco há nela algum propósito.
Pois a vida é uma criação lúdica, resultante da perfeição divina e, portanto, não há nada a ser satisfeito e buscado na e pela vida, pois a vida em si e por si, já é plena de abundância e prosperidade.
Līlā significa que, ao invés de uma necessidade, a vida, em si, é liberdade. Ou seja, não há motivo ou razão para viver, a não ser, viver; pois a vida é apenas o que dela fazemos, acreditamos e vivemos. Logo, podemos ter uma vida boa ou não - fica a critério de cada um.
Līlā é a brincadeira em sua mais pura essência, um passatempo espontâneo, que não tem outro propósito além de experimentar a alegria de viver. A vida, por si mesma, satisfaz todas as nossas necessidades de viver, e a natureza nos abastece de tudo o que é necessário; então, basta apenas apreciar a vida, desfrutar.
Quando adotamos um personagem e criamos um mundo à parte, e nos envolvemos em tramas e fantasias, para que sejamos favorecidos em tudo, crendo como real a disposição do “tudo para mim, nada para os outros”, a conjuntura se torna caótica, a vida se mostra um inferno e padecemos amargamente nesse jogo descabido.
Com o yoga, aprendemos a "brincar de viver", sem ser enredado pela tentação de fazer da vida um jogo, onde sempre alguém tem que perder para outro ganhar. Aprendemos a participar da brincadeira da vida, e até se arriscar às vezes, porém, sem se permitir que o lúdico nos coloque em perigo.
Yoga é ser lúdico, porém, mantendo-se lúcido. É a falta de clareza entre a linha tênue que separa o jogar do brincar, a incompreensão entre o competir e o cooperar, que nos leva à derrocada, pela via da ganância e do egoísmo.
De certo, até aprendermos a ‘brincadeira divina”, passaremos por momentos de turbulência material e emocional. No yoga, aprendemos que viver é a arte de sorrir, cada vez que o mundo diz ‘não’. Pois o 'não' vida, é o que nos traz de volta à realidade. Afinal, no implacável jogo da vida, até quando se ganha, se perde.
Yoga: estude, pratique, viva e deixe viver.
Hari Om Tat Sat.
Lúdico e Lúcido
O lúdico tem a lucidez do momento presente que é o único em que é possível dar as cartas e virar o jogo.
O lúcido tem o ludismo do faz de conta que se reconhece fugaz e mutante.
O lúdico nos agracia com enormes porções de criatividade e dinamismo; e com ele aprendemos o que é ousar sair da zona de conforto.
O lúcido nos oferece grandes doses de lógica e estÉTICA; e com ele aprendemos o que é ponderar, acolher e crescer.
Quando o lúdico e o lúcido se juntam gozamos brilhante-mente o presente do presente.
(Manúcia Passos de Lima)




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