YOGA: COMPREENDER PARA TRANSCENDER
- Marcelo Augusti
- 27 de nov. de 2024
- 7 min de leitura

Somente a luz da compreensão removerá a escuridão da ignorância.
(Sri Swami Satchidananda)
Já foi dito que a vida é um paradoxo. Um enigma a ser desvendado por cada pessoa, individualmente. Ninguém se torna um sábio autorrealizado por osmose. Há de se dedicar muito ao estudo e ser constante na investigação do “quem sou eu?”.
A autorrealização espiritual é um processo da "alma”. É um movimento de “sair da escuridão” em direção “à luz”; é um deslocar-se da Terra para o Céu; um mover-se do Humano ao Divino; um desprendimento da Natureza para absorção ao Espírito.
Autorrealização espiritual é autoconhecimento. O autoconhecimento é a “porta de saída” do mundo material. É esta “porta de saída” que nos leva para “dentro” de nós mesmos, e que nos aponta o caminho da sabedoria.
Quanto mais perseveramos no autoconhecimento, ou seja, quanto mais nos aprofundamos em nosso interior, maior é a luminosidade que recebemos. Tudo vai se tornando mais visível, leve e compreensível. É como um “sol interior”, com seus raios refulgentes, clareando o nosso despertar.
Portanto, para compreender se faz necessário, antes, conhecer. E antes de transcender, necessário se faz compreender. Assim, antes de nos aventurarmos no “mundo interior”, temos que compreender o “mundo exterior”; antes de sermos divinos, temos que ser, primeiramente, humanos.
A transcendência é uma ascensão. Transcender é ir além. Ir além do humano. Ir do humano para o divino. Mas como poderemos “ir além” do humano, se não realizarmos, antes, a humanidade em nós? Como poderemos ser divinos, se sequer alcançarmos a humanidade?
Vejamos essa breve descrição do termo ‘humanidade’, dada pela Universidade de Coimbra, Portugal, considerada, pela UNESCO, como uma das seis Universidades mundiais classificadas como Patrimônio Cultural da Humanidade:
Do latim ‘humanitas’, Humanidade é um substantivo polissémico, cujo sentido começa na designação objetiva do conjunto de todos os seres humanos que habitam a terra, para significar, de um modo subjetivo/lato, a natureza intrínseca de tudo aquilo que é eminentemente ‘humanus’, isto é, que constitui a essência da experiência/vivência humana. Em sentido figurado aproxima-se do conceito de benevolência, qualidade comum e abstrata que funda a constituição moral do homem e o aproxima naturalmente do seu semelhante, assegurando a sua coesão e a sobrevivência em comunidade.
Podemos dizer que "ser humano" não significa apenas ‘nascer humano’, mas estar integrado à comunidade de seres humanos, vivendo naturalmente em harmonia com todos. Mas para isso acontecer, temos que aprender a “ser humanos”, temos que superar a "natureza animal" (comum a todos os seres), para que a "essência espiritual" (esta essência da vivência humana), floresça e frutifique.
“Ser humano”, assim, equivale a dizer que, enquanto não expressarmos, espontaneamente, as qualidades de afeição, empatia, compaixão e generosidade para com todos os seres, não teremos alcançados o patamar de “ser humano”.
Antes da “revelação do divino”, temos que ter a “experiência do humano”. E essa experiência, embora suscite alegrias e tristezas, dor e prazer, por vezes mais desgraças do que graças, é o que nos aproxima naturalmente da realidade comum a todos os seres vivos: o sofrimento.
Mas viver pode ser mais do que sofrer, se compreendermos o sofrimento. O sofrimento é apenas o guia fiel que nos orienta para o interior de nós, para que conheçamos a nossa essência. É ele que nos conduz ao “sol da sabedoria”, que habita o centro de todo ser. Mas temos que compreendê-lo.
O sofrimento é necessário para o despertar das ilusões. Ele é a consequência da nossa percepção errada da realidade. Há muitos obstáculos no caminho do conhecimento e da compreensão. No yoga, denominam-se kleshas os obstáculos que nos impedem a percepção correta da realidade.
Pois a vida não flui naturalmente quando nosso estado mental está obscurecido, isto é, quando os raios do “sol da sabedoria" não iluminam a consciência. Os kleshas, portanto, são os fatores que obstruem o conhecimento e geram ações e pensamentos que provocam o sofrimento.
No Yoga Sutras, Patanjali nos esclarece sobre a questão dos kleshas. Em Sadhana Pada (II, 3), ele cita cinco obstáculos que obscurecem a mente: avidya (ignorância), asmita (egoísmo), raga (apego aos prazeres dos sentidos), dvesha (intolerância ou aversão) e abhinivesa (apego à vida em si).
A raiz dos kleshas é avidya. É a ignorância que constitui-se no “solo fértil” da mente para que os demais kleshas brotem, cresçam, floresçam e frutifiquem. Essa avidya, entretanto, não é falta de conhecimento no sentido comum do termo; algo do tipo "não conheço mirtilo". É muito mais do que isso.
No Sutras, Patanjali explica o que é ignorância:
Ignorância (avidya) é considerar o impermanente como permanente, o impuro como puro, o doloroso como agradável, e o não-Eu como o Eu (II, 5)
A base de avidya é considerar o “não-Eu como o Eu”. O “Eu” é tudo aquilo que é eterno e imutável, é a essência – a centelha divina – que está em tudo e toda parte; o “Eu” é Brahman, a consciência infinita que subjaz a toda existência.
Além do “Eu” nada existe em si e por si. Mas tudo o que os nossos sentidos alcançam é o “não-Eu”, isto é, os fenômenos que emanam do “Eu”. Avidya é exatamente tomar o fenômeno (as aparências mutáveis e finitas), como sendo a verdade, o Real Imperecível.
Tudo o que muda não é o “Eu”. Quando dissemos “estou com fome”, “sou professor”, “sou mulher”, “sou brasileiro”, “estou feliz”, “estou com dor”, "sou mãe", "estou triste", etc. – tudo isso é transitório e impermanente, pois depende das circunstâncias kármicas do nascimento de cada indivíduo, e também são consequências de suas ações no presente.
Assim entendido, o corpo e suas identificações (sociais, gênero, profissão, psíquicas, etc.) são apenas consequências circunstanciais da vida terrena. Não somos o corpo e suas identificações; não somos isso, somos “Aquilo” (Aham Brahmasmi – “Eu sou o Divino”).
Quando compreendemos essa verdade, nada mais nos perturba. Passaremos por muitas circunstâncias na vida, sem dúvida; muitas coisas virão até nós, enquanto outras se afastarão. Ora estaremos alegres, ora chateados.
Porém, superado avidya, saberemos que tais coisas não nos definem, pois não somos esses estados mentais flutuantes, e tampouco as coisas materiais que nos atam à concretude da realidade terrena.
O yoga nos ensina que estamos aprisionados no samsara, isto é, o infindável ciclo de nascimentos e mortes. Quando a consciência se enreda na matéria, criam-se as sementes kármicas, que são os estímulos que nos mantém na rede do samsara.
O que faz a consciência enredar-se na matéria é asmita. Quanto mais nos identificamos com o corpo, mais nos apegamos a ele; por consequência, tornamo-nos egoístas, pois queremos cada vez mais satisfazer os desejos do corpo, isto é, o “não-Eu”. Isto nos aprisiona no samsara indefinidamente.
Façamos uma analogia. O samsara é como um imensurável jardim: um espaço planejado para exploração dos sentidos, porém, cercado por intransponíveis muros de pedras colossais. A própria raiz nórdica e saxã da palavra jardim, “garth”, significa “cerca”. Dentro desse jardim, encontramos de tudo o que a nossa mente é capaz de imaginar. Tudo mesmo. E como somos criativos!
Uma vez nesse jardim, nele nos perdemos em suas infinitas alamedas, becos e labirintos, com suas miríades de atrativos, que vamos projetando em nossa mente. Temos o desejo de conhecer tudo o que nele há, e cada vez criamos mais, e mais, e mais. Mas destruímos também.
E fazemos desse jardim um parque de diversões, que muitas vezes se tornam aberrações. E deixamo-nos levar de tal modo pelas circunstâncias desse “paraíso / inferno”, que não percebemos que tudo não passa de nossa própria imaginação. Tudo parece muito real. Somos os arquitetos e os engenheiros de uma criação que nos sufoca e aprisiona.
O sofrimento é o guia que nos conduzirá pelos infinitos caminhos desse jardim. Pois queremos sempre mais, e esse “desejo de querer sempre mais”, gera a ansiedade da expectativa de conseguir, e a angústia da inquietação por não ter alcançado.
Sofremos para ter e estar, sofremos por não ter e não estar, e sofremos por tentar preservar o que se tem e onde se está. Por isso, o sofrimento é o nosso guia fiel, pois ele nos acompanha em todos os nossos passos por esse "jardim de ilusões".
Mas esse jardim não tem entradas e nem saídas, apenas caminhos e o muro colossal a cercá-lo. Não sabemos como “entramos” nele. E quando tentamos sair, não encontramos saída. Pois não há passagens que nos conduzam de dentro para fora.
E ao seguirmos pelos vários caminhos, buscando a saída, sempre nos deparamos com o mesmo imenso e intransponível muro. Não importa a direção a seguir, o final é sempre o “dar de cara” com o muro.
O sofrimento tem a função de nos “abrir os olhos” para as ilusões desse jardim. Mas, sem a correta compreensão, muitas vezes somos “levados a crer” que o sofrimento nos conduzirá para fora do jardim.
Porém, o sofrimento, quando compreendido, como já dito, está a nos guiar para o nosso interior, não para fora do jardim. Temos que compreender o sofrimento, pois, a princípio, não sairemos do jardim, mas, sim, aprenderemos a viver nele, temporariamente, sem por ele ser enredado.
Por isso se diz que “a porta de saída é para dentro”. Pois é no interior de cada ser que se encontram os recursos para conhecer e compreender a vida nesse jardim. Quando compreendemos o sofrimento, compreendemos a condição humana; e, mais do que isso, alcançamos a compreensão da existência de todos os seres.
Para transcender é necessário compreender; e para compreender é necessário conhecer. Temos que nos livrar primeiro de avidya, para que os demais obstáculos sejam removidos. Yoga é para dissipar avidya; é permitir que a luz da sabedoria ilumine a escuridão da ignorância. Apenas quando todos os obstáculos forem removidos pela prática de yoga, saberemos onde estamos e por quê estamos.
Não esqueçamos, pois, dessa verdade: a porta de saída é para dentro; a porta de entrada é para fora. Quanto mais no exterior e na superfície permanecemos, maior a escuridão. Quanto mais para o interior nos voltamos, e nele nos aprofundamos, maior a claridade.
No yoga, a primeira expressão da “realização do humano” é o florescer do discernimento, cujo fruto primeiro é a equanimidade. A “realização do humano” é a própria “realização do divino”. Quando nos tornamos humanos, nos tornamos divinos. Pois a essência é a mesma.
Yoga, você já sabe: estude, pratique. Mas faça agora!
Hari Om Tat Sat.
Quem não evoluiu ainda a este nível de consciência, não pode imaginar as torturas por que passa aquele que atingiu o grau de crescimento mental que torna possível ver as reais questões da existência e a impossibilidade de as compreender. Pois este saber não se alcança por meio de raciocínio puramente intelectual, ainda que tais esforços sejam muitas vezes necessários para favorecer o despertar e a evolução da consciência.O saber verdadeiro, entretanto, vem como uma forma especial de consciência: a percepção intuitiva do «Eu» real (Yogue Ramacháraca)
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