YOGA, A RODA DA VIDA E O ETERNO RETORNO
- Marcelo Augusti
- 9 de fev.
- 9 min de leitura
Atualizado: 14 de fev.

A consciência desperta para si mesmo, para sua existência eterna e ilimitada, quando chegamos na confluência do passado com o futuro. Esse é o ponto de inflexão do despertar: é quando temos a percepção clara ou a revelação de que o nosso futuro é o nosso passado (Kavi Manish)
No yoga, quando se fala em vida, estamos falando de um ciclo recorrente de nascimento-morte-renascimento. Esse padrão cíclico da vida é prevalecente nas principais tradições filosóficas ou religiosas da Índia, como o jainismo, o hinduísmo, o siquismo e o budismo.
O padrão cíclico recorrente é denominado de “roda da vida” (bhavachakra) ou samsara. As três principais características do samsara são: (1) o fluxo contínuo da existência mundana, (2) a transmigração das “almas” e (3) a experiência da insatisfação e do sofrimento.
No “ciclo mundano”, as entidades vivas (jivas) permanecem aprisionadas em contínuos e intermináveis renascimentos, enquanto não compreenderem a natureza da realidade e, assim, se libertarem da “ilusão da criação” (maya).
Cada ciclo de vida e morte é impregnado de insatisfação e sofrimento, pois as jivas, no processo de “vir-a-ser”, carregam marcas (karma) de cada ciclo anterior. Tais marcas são frutos das ações realizadas nas vidas passadas, e que geram as “tendências de comportamento” (vasanas), as quais exercem forte influência nas escolhas da vida atual.
A meta mais elevada de cada indivíduo em cada “ciclo de vida vivido”, portanto, é libertar-se das “sementes kármicas” geradoras dos eventos recorrentes que, embora tenha seus atrativos, quando não compreendido, é a causa de todas as angústias, aflições e ansiedades que nos assolam.
Pois o karma também é o fator que forma o “padrão mental particular” (samskãra) de cada indivíduo, isto é, o modus operandi de pensar individual, os condicionamentos que submetem o indivíduo a novos renascimentos.
A libertação da “roda da vida” é a realização máxima do yoga. Essa realização é moksha, kaivalya e nirvana. A libertação do sofrimento provocado pelos vasanas é moksha. O estado de consciência que distingue claramente a natureza material da natureza espiritual, isto é, a superação definitiva dos samskaras, é kaivalya.
E a extinção completa da “roda da vida” é nirvana (o “apagar” definitivo da fogueira das paixões, dos desejos e das vaidades, que são as causas dos infindáveis renascimentos).
Moksha significa “soltar, desprender, deixar ir”; é emancipar-se do ego e do egoísmo que provoca o sofrimento; moksha, como dito, é a meta mais elevada do ser humano, a busca mais importante em cada ciclo vivido, e que se alcança em uma vida dedicada ao conhecimento (jñana) e ao yoga.
Para se chegar ao estado de mukta, isto é, “aquele que se desvinculou das tendências ao sofrimento”, o indivíduo, agora “liberto em vida” (jiva mukta), alcança esta condição privilegiada seguindo o “caminho da meditação” (Raja Yoga), que culmina em kaivalya. O significado de kaivalya é “isolamento”, no sentido de separar-se daquilo que não é “real”.
Isto significa que o "padrão mental" condicionado de cada ser senciente, não corresponde à natureza da mente de cada ser: pura, tranquila, auspiciosa. Kaivalya é a ruptura com esse padrão, que aprisiona a mente na ilusão; é o "estado supremo" (paramam padam) do ser, isto é, liberdade e imortalidade.
Por isso, Kaivalya é “conhecimento e compreensão completa” (kevala-jñana) da realidade. É o estado de consciência mais elevado que um indivíduo alcança em vida, e que se caracteriza pela total independência de tudo o que pode provocar apego ou aversão.
Kaivalya é a separação definitiva do egoísmo, pois o indivíduo rompeu, definitivamente, com as ilusões que o aprisionavam no samsara e que lhe causavam sofrimento. A realização de kaivalya, por conseguinte, conduzirá ao nirvana ou à plenitude da “bem-aventurança eterna” (ānanda).
Um importante ensinamento do yoga, portanto, é que a vida é um ciclo intermitente de expansão (nascer, criar, crescer, desenvolver) e retração (morrer, decair, encolher, reverter). É esta natureza cíclica e repetitiva da vida que, alguns filósofos existencialistas, afirmavam como “o absurdo da existência”. E o que seria esse absurdo?
Imagine algo que você vive hoje, quer seja agradável ou não, e que se repetirá na próxima vida, e na próxima, e na próxima, e na próxima... Como se você estivesse eternamente condenado a vivenciar sempre as mesmas experiências, continuamente, indefinidamente...
Para entendermos isso melhor, temos que saber um pouco sobre as narrativas do mito da criação no hinduísmo. É importante entender que o “mito da criação”, em qualquer tradição religiosa, tem uma função educacional e moral, de orientação geral para o modo como vivemos a vida.
Não se trata, portanto, de uma simples “explicação da origem do universo”; porém, mais do que isso, tais narrativas transmitem ensinamentos espirituais valiosos e que servem para nossa reflexão sobre o sentido e o significado da existência.
No hinduísmo, a origem do universo remete ao “ovo cósmico” ou “ovo de Brahma” (Brahmanda). Diz o mito que, flutuando nas águas do “mar primordial”, Vishnu repousava com sua mente serena sobre as ondas tranquilas.
De um leve movimento de sua “consciência infinita”, uma onda se agitou, e eis que de seu umbigo, emergiu uma flor de lótus e, sentado nela estava Brahma, que a “tudo” contemplava em perfeita serenidade. Nesse estado de profunda meditação, Brahma permanecia em kevala kumbhaka (a suspensão completa da respiração).
Na mente perfeitamente pacífica de Brahma, eis que surgiu um pensamento. Desse pensamento, emergiu um desejo; e esse desejo tornou-se ardente, a “chama da vida”, a luz que a tudo manifesta, e uma “enérgica motivação para a ação” (tapas).
A manifestação do universo e tudo o que nele há, teve início a partir da respiração de Brahma. Do primeiro pensamento, nasceu o desejo da criação; e na primeira expiração, tudo se manifestou conforme o pensamento de Brahma. Sentado na flor de lótus, Brahma era a expressão máxima da pureza e imaginação divina.
A expiração (manvantara), é o momento em que a vida emana da própria divindade, e se manifesta em toda a sua beleza e grandiosidade, em toda a sua diversidade e variedade de nomes e formas. Manvantara é expansão, a propagação da própria onda que se agitou nas águas serenas do "mar primordial" onde Vishnu permanecia em tranquilo repouso.
Mas quando Brahma inspira, tudo se recolhe, tudo se retrai. A inspiração (pralaya) é o momento em que a vida se encontra em seu estado latente; ela é, portanto, a possibilidade do “vir-a-ser”. Em pralaya, tudo "deixa de existir", e torna-se uma potencialidade.
Uma única respiração de Brahma dura bilhões de anos terrestres. E após completar 100 respirações, ou seja, 100 ciclos de vida bramânicos, expandindo e recolhendo o universo, o próprio Brahma se recolhe no ventre de Vishnu.
Aí está a “roda da vida”, que os existencialistas interpretaram como o “eterno retorno”. Bilhões de anos, indo, vindo e passando por experiências semelhantes, gozando de prazeres e suportando sofrimentos recorrentes.
Vejamos o que dizia o filósofo Nietzsche sobre o “eterno retorno”:
Toda a sua vida, como uma ampulheta, sempre será revertida e se esgotará novamente - um longo minuto transcorrerá até que todas as condições das quais você evoluiu retornem na roda do processo cósmico. E então você encontrará toda dor e todo prazer, todo amigo e todo inimigo, toda esperança e todo erro, toda folha de grama e todo raio de sol mais uma vez, e todo o tecido das coisas que compõem sua vida (Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, 1882).
Para Nietzsche, o eterno retorno, mais do que a repetição exata das experiências passadas, era a oportunidade de um novo amanhã, um recomeço, o início de uma "velha jornada" requentada na "novidade".
Esse “novo dia” era, também, um “horizonte livre”, uma oportunidade para avaliar ou reavaliar a vida em sua fastidiosa e trágica recorrência. Uma repetição que, contudo, se renova em diferentes circunstâncias e formas, e que, à luz da novidade e a partir de novos sentidos e outros significados do mesmo, daquilo que já foi, fatalmente voltará a ser.
Para o filósofo, esses “mil recomeços” nada mais são do que os antigos valores que decaem e saem de cena para, novamente, retornarem, tomando outras e novas roupagens, passando por novas interpretações e criações, novas reavaliações, porém, provocando, na vida atual, os mesmos impactos de outrora.
Assim, para Nietzsche, a vida era uma infindável repetição, ciclos que se renovam e onde passamos pelas mesmas experiências, ainda que de maneira diferentes, pois que se transformam em “novas velhas verdades”.
Embora tudo seja o mesmo, esse tudo e esse mesmo ganham novos contornos e coloridos, outros arranjos, transmutados sob outras formas e nomes, em atrativos convincentes para a época em que ressurgem.
Nietzsche afirmava que, quando “aquilo que já foi, retorna”, isso é o início de uma nova tragédia humana (incipit tragoedia). A vida humana, assim, seria um sofrimento sem fim – uma trágica comédia, diria – pois cada início, ainda que renovado, é o prenúncio de um final fadado a repetir-se. Mas, afinal, por que tudo retorna?
O filósofo explicava que, para o ser humano, dotado de potencialidades latentes, nada é capaz de pôr um fim ao desejo ardente pela busca da satisfação, pela soberania do gozo, a forte tendência à criação e inovação, ao desejo pelo perigo e a aventura da vida. É a insaciabilidade – a eterna insatisfação do ser humano – que o leva a repetir a dose da vida que já viveu.
Para Nietzsche, havia apenas uma saída para o "eterno retorno". Dizia ele: "Abstenha-se do desespero, ame o destino. Aceite a recorrência como ela é, pois somente assim alcançarás a liberdade" (A Gaia Ciência, 1882).
O “eterno retorno” pode ser percebido claramente em nossa própria vida. Nossas tendências, compulsões, ressentimentos, paixões, rancores, negações, ganâncias, ambições e invejas sempre nos levam a repetir as experiências passadas.
As experiências passadas podem ter nos causado prazer ou dor, não importa; de algum modo, desejamos revivê-las, principalmente, aquelas que nos provocaram sofrimento, aflição e dor, apesar de. Seria essa a estupidez humana?
O potencial da criação é sem limites e, tampouco, sem qualquer finalidade prática. Qual o sentido da vida, afinal? Se perguntássemos ao Buda, ele nos diria: o sentido da vida é a própria vida. Não há nenhum sentido na vida, além da vida em si.
Vimos que, a partir de um único pensamento, o desejo da criação tornou-se manifesto; concentrando toda a “energia vital” (prana), contida na respiração suspensa durante profunda meditação, Brahma, ao expirar, expandiu sua consciência pura, e sua energia criativa e ilimitada, deu origem ao universo.
O yoga nos ensina que podemos alcançar a consciência de Brahma, pura, criativa, eterna e ilimitada, pela prática da meditação no Brahma muhurta (hora/tempo de Brahma).
Brahma muhurta é o período de tempo de 1h36min antes do nascer do sol, até 48min após. Considera-se este período como o mais apropriado para meditarmos nas qualidades que mais nos aproximam da divindade, pois trata-se do momento em que a mente ainda não foi agitada pelas ocorrências do dia.
Os principais atributos de Brahma, além da pureza, são estudo e conhecimento, a sabedoria, o discernimento, a disciplina, o poder criativo e o desapego, pois Brahma, apesar de criar um mundo aprazível, não se deixa levar pelos atrativos de suas próprias criações.
Portanto, na meditação em Brahma muhurta, contemplamos profundamente essas qualidades, para que elas se expressem espontaneamente em nossa vida cotidiana.
O mito da criação do universo no contexto do hinduísmo, o “eterno retorno” e a “roda da vida”, em suas aproximações e diferenças, têm muito a nos ensinar sobre as nossas condutas e atitudes na vida.
A criação é um ato do pensamento. A partir do pensamento, surge um desejo que, alimentado pela constância do “calor do entusiasmo”, concretiza-se. Ao materializar-se, o que foi criado irá se expandir, e seguir o curso natural da vida, que é o processo de nascer, crescer, desenvolver, estabilizar, decair, recolher-se e desaparecer. Assim é com a vida de cada um de nós.
O “eterno retorno” nos mostra o quanto somos propensos a cometer os mesmos erros, os mesmos equívocos, os mesmos desajustes. Alimentamos o nosso “corpo de dor” com pensamentos recorrentes que remetem às nossas frustrações e ressentimentos.
E, por mais absurdo que seja, somos impelidos a repetir as mesmas experiências desastradas, cujos processos dolorosos, nos causaram muitos sofrimentos. O desafio do “eterno retorno”, portanto, é refletir sobre nossos atos, para fazer o melhor de nós em cada circunstância, sem sermos capturados pelas ânsias e aflições, com o intuito de nos tornarmos um ser humano melhor a cada dia.
A “roda da vida” nos ensina que nossos pensamentos, palavras e ações, quando não expressam generosidade, simplicidade, compaixão e humildade, são as causas que nos atrelam ao sofrimento. Cada pensamento, palavra ou ação é uma semente que, ao encontrar terreno fértil, germinará e dará seus frutos, doces ou amargos, ao qual colheremos no tempo oportuno.
Mas a “roda da vida”, ao contrário do “eterno retorno”, não é uma recorrência infinita. No hinduísmo, os contínuos renascimentos servem para purificar a consciência dos indivíduos, pacificar a mente, até que realizem moksha, kaivalya e, por fim, o nirvana.
Para finalizar, como já dito, Brahma emerge do umbigo de Vishnu, sentado em uma flor de lótus. O lótus, na tradição hindu, simboliza a virtude da Pureza. Apesar de emergir das águas lamacentas dos pântanos, o lótus não se mancha e se abre para receber e refletir a luz do sol.
Assim devem ser nossos pensamentos: tão puros que possam refletir a luz divina, para criarmos um mundo genuíno onde a prosperidade, o amor, a paz, a sabedoria e a felicidade sejam infinitamente recorrentes.
Hari Om Tat Sat.

Se quiser viver muito e ter uma vida boa e saudável, cultivo bons pensamentos. Pois o limite de seus pensamentos será o limite de suas possibilidades. O seu destino é arquitetado pelos seus pensamentos. O mundo à sua volta é o que você quis que fosse (Swami Sivananda)
Comments