YOGA, HISTÓRIA E MEMÓRIA
- Marcelo Augusti
- há 1 dia
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Nem tudo o que é tecnologicamente possível é tecnologicamente aceitável (Kavi Manish)
O ser humano não aceita o que é real. A atitude típica do ser humano é negar a realidade. A manipulação da realidade é uma maneira de escapar do real. O real é a verdade, mas nem sempre o que cada pessoa acredita e constrói para si mesmo está fundamentado na verdade.
O ser humano nega a realidade, pois ele quer que a realidade seja conforme a sua própria verdade. Ele impõe à realidade aquilo que ele acredita, mesmo que essa “realidade que ele crê como tal”, não seja evidenciada nem pela religião, pela filosofia ou pela ciência e, tampouco, por ele mesmo, caso a investigasse com atenção.
Mas tal atitude e comportamento, típicos do ser humano, exacerbaram-se de uns tempos para cá. O advento da pandemia da Covid-19, enclausurou as pessoas não apenas em suas residências, porém, mais do que isso, aprisionou-as nas “bolhas de informação” das redes sociais.
As “bolhas de informação” são fenômenos da tecnologia informacional, que expõem os indivíduos a conteúdos que apenas confirmam e reafirmam as suas próprias opiniões e crenças, limitando a diversidade de perspectivas que as pessoas poderiam encontrar no vasto e criativo “mundo online”.
Essas “bolhas” são causadas pelos algoritmos que condicionam os ambientes virtuais, personalizando a busca de preferências, onde, em uma “linha do tempo”, são exibidas as publicações ou visualizações mais acessadas de cada usuário, e sugerindo-lhe conteúdos aos quais ele mais interage, curte ou que mais se identifica.
Tais “bolhas” criam uma falsa realidade do mundo vivido; uma realidade que somente interessa ao usuário da plataforma, uma realidade que somente ele crê real. As “bolhas” prendem a atenção do usuário, para que ele permaneça o maior tempo possível interagindo ou apenas visualizando e curtindo o que gosta, reforçando suas identificações.
O problema das “bolhas”, é que tal "realidade" é forjada por fantasias e falsidades. E, como dizia um certo líder político de outrora, quando uma mentira é contada muitas vezes, ela se torna uma “verdade”. E isso causa um efeito deletério na história e na memória dos indivíduos e da sociedade.
A história, como ciência, não se faz por observação ou experimentação, como é o caso das ciências naturais; a realidade histórica é aquela ao qual se indaga o passado e se testemunha aquilo que foi visto. A história, assim, é um relato, uma narração de quem pode dizer “eu vi, eu senti, eu vivi”.
Logo, “aquele que vê é aquele que sabe”, pois presenciou o acontecimento. Assim, o “ver e o saber”, como fontes de conhecimento histórico, significam que, se quisermos saber algo sobre o passado – mas que não fomos testemunhas oculares – teremos que investigar os fatos, recorrendo a tudo o que tivermos à disposição e que possa servir como material confiável para determinar as causas, os desdobramentos, as consequências.
A busca pelo conhecimento histórico, portanto, é uma procura das ações realizadas pela humanidade, não apenas no sentido individual, porém, mais do que isso, pelo impacto dessas ações na coletividade. Podemos dizer que a história é a ciência que investiga as ações que os seres humanos realizaram enquanto sujeitos engajados socialmente.
Como a história requer uma série de acontecimentos para que seja desvendado o sentido, o significado e as consequências das ações humanas no passado, igualmente requer a narração desses acontecimentos pelas testemunhas oculares.
Ou seja, alguém deixou uma declaração, um discurso, uma exposição, uma descrição, um documento, uma explicação, enfim, um relato dos acontecimentos, seus encadeamentos e consequências na sociedade da época. Tais relatos mostram o onde, o quando, o por quê e o como ocorreram os fatos.
É aqui que se encontra um dos problemas para desvendar ou reconstruir a realidade histórica, pois as narrativas sobre o passado podem ser verdadeiras ou falsas, baseadas em fatos, na imaginação ou má-fé do locutor.
Assim, a evidência da realidade histórica pode ficar comprometida, a depender, por exemplo, de quem é o detentor da narrativa, quem eram seus contatos sociais, qual era a sua popularidade, sua ideologia política, seus interesses pessoais, seu poder e influência econômica na sociedade e sua criatividade para inventar uma “história” que não houve.
A memória, portanto, é uma das principais fontes de informações da história. Pois, para tentar reconstruir o passado e compreendê-lo em seus pormenores, os relatos e as lembranças individuais e coletivas são importantes, ainda que não se constituam na única matéria-prima.
A memória é um elemento fundamental daquilo que se denomina como identidade cultural, isto é, um complexo conjunto de crenças, valores, hábitos, costumes, tradições e práticas que definem um grupo social e o diferenciam de outros. Trata-se de um sentimento de pertencimento, que se constrói e reconstrói ao longo do tempo.
A memória, pois, é o reconhecimento de algo “ao qual pertenço ou que me pertence”; ela é o recordar de experiências, de fatos e sentimentos, que formam a identidade pessoal e, por meio da identificação de suas particularidades compartilhadas em comum, sustentam a cultura de um grupo social e sua unidade.
Ainda que história e memória sejam coisas distintas, todavia, elas estão diretamente relacionadas. Pois, se a história recorre à memória para desvendar o passado, inclusive impactando-a, a memória, por sua vez, influencia na construção das narrativas históricas.
Logo, a memória fornece os elementos básicos para a construção da história, enquanto a história oferece um contexto para a interpretação da memória, do qual emergem as tais narrativas.
A história e a memória, portanto, modelam a percepção das pessoas em relação aos acontecimentos do presente, interferem na interpretação do passado e projetam um futuro, que poderá estar comprometido por falsos relatos que somente interessam a quem os contam.
As pessoas, e a sociedade como um todo, podem, então, ser capturadas por falsas identificações culturais e seus valores, que são originadas pelas “lembranças ilusórias” sobre o passado, e sustentadas por mentiras e narrativas mal intencionadas.
A história, como ciência, por meio de seus métodos investigativos, tem como objetivo, reconstruir o passado de um modo mais confiável possível, para que esse passado possa ser compartilhado pelas pessoas em geral, provendo um sentido e um significado para a coletividade, que seja capaz de, no presente e no futuro, sustentar a sua coesão social.
História e memória são, assim, os pilares da estabilidade social, de uma maior participação cívica e da melhoria do bem-estar social geral, pois geram um senso de pertencimento que, por consequência, estimula o apoio mútuo as pessoas, a compreensão das diferenças culturais e pessoais, e a cooperação entre os indivíduos e entidades para o alcance de objetivos comuns.
Mas o que história e memória têm a ver com yoga? O yoga nos ensina sobre o “comentador interno”. E quem é esse “comentador interno”? Ele é a “voz que não se cala”, aquele “que fala sem parar em nossa cabeça”. É o ruído insano que não nos permite a paz e o silêncio.
Esse “ruído interno que nunca cessa” é composto por uma matéria-prima bem específica: são as nossas angústias, medos, insatisfações, ansiedades, traumas não curados e frustrações.
Esta “verborreia sem fim” origina-se, pois, do que aprendemos em nossa infância e, ao longo do tempo, acumulamos como “bagagem de vida”. E tudo isso permanece registrado na memória como "as minhas lembranças".
Assim, as críticas e elogios que recebemos e, por extensão, as sensações, emoções e pensamentos delas decorrentes, se cristalizam como elementos que dão contorno e colorido àquilo que acreditamos ser “a minha história de vida”.
O “comentador interno” nos leva a uma percepção equivocada de que “somos nós mesmos falando conosco”. Mas essa voz não é o que somos. E embora, por ignorância, desconhecemos a origem desse “papagaio sofisticado” que nos fala incessantemente, orientando-nos, criticando e julgando-nos – ainda assim acreditamos nele, sem em nada duvidar.
As “bolhas de informação” causam em nossa mente, fenômeno muito semelhante a esse. Por sermos bombardeados sempre como as mesmas imagens e mensagens, tais informações criam a ilusão de que “isso é a verdade e a realidade”. E esse conteúdo impregna a nossa memória, confunde a nossa história.
A memória não distingue o verdadeiro do falso. Ela apenas armazena a informação e forma seus arquivos, dos quais surgem as reminiscências. Reminiscências são recordações de imagens do passado e podem ser transmitidas de geração a geração, por meio das narrativas históricas.
As imagens do passado são construídas por experiências subjetivas, e que são influenciadas por emoções, sentimentos e narrativas. A recordação de uma imagem se refere a algo que está ausente – um signo, um significado, um sentido – mas que consideramos como "tendo existido" no passado.
Esta imagem-recordação, presente na memória, diz-nos sobre algo que já não está mais lá, mas que um dia já esteve. Quando, em nossa lembrança, reencontramos esse “tendo estado”, acreditamos na fidelidade da memória e reconhecemos, assim, a "nossa história"; e identificamo-nos com ela, independentemente de ser real ou forjada pela memória coletiva.
A lembrança individual não existe sem a memória coletiva. As lembranças individuais são influenciadas e moldadas pelo contexto social e circunstâncias históricas em que vivemos, e pelos grupos aos quais nos identificamos e pertencemos.
É muito comum que, de tanto ouvir falar sobre um acontecimento ao qual não estiveram presentes, as pessoas passam a falar do evento como se lá estiveram, relatando, inclusive, detalhes que não presenciaram e - pasme - que nunca ocorreram. Como no dito popular, “quem conta um conto, acrescenta um ponto”.
Entretanto, ainda que tão frágil em sua veracidade, é pela memória que nos reapropriamos do passado, afirmamos a nossa identidade pessoal, reconhecemos a nossa história de vida e conferimos a esse “conhecimento” uma fixidez que se torna tanto a base dos nossos atos no presente, como se convertem em ideais futuros.
A história e a memória se tornam um grande problema em nossa vida, quando somos cooptados pelo identitarismo, um fenômeno originado pelos mais variados aspectos dos sistemas políticos, e que visa, principalmente, à hegemonia cultural e econômica, além do controle social, domínio sobre os indivíduos e o lucro financeiro.
O identitarismo nos conduz ao apego às nossas origens culturais, nossa história de vida, tradições e lembranças. No identitarismo, entram em cena tudo aquilo que, em aparência, nos torna diferentes: raça, etnia, gênero, religião, nacionalidade, classe social e etc.
O resultado disso: preconceitos de todos os tipos, racismo, xenofobia, intolerância social e religiosa, dentre outros, que apenas provocam e exacerbam a violência contra tudo o que é diferente "daquilo que me pertence, daquilo que eu sou".
Afinal, quantas vezes nos deixamos levar por esse “comentador interno”, acreditando que ele é a voz da consciência e, seguindo suas orientações, agimos barbaramente, atentando contra as pessoas e os seres vivos? Mas ele não passa de nossa mente egóica, tentando sobreviver e permanecer no comando.
O autoconhecimento, que se faz pelo ‘estudo de si mesmo’ (Svãdhyãya, uma das cinco disciplinas ou Niyamas do Yoga Sutras), nos faz refletir sobre como as nossas reminiscências forjam a mente egóica; e nos leva a perguntar quem somos, de fato, e como chegamos onde estamos - influenciados pelas narrativas do ego.
É certo que, se a memória acumular fantasias e falsidades, a história não será verdadeira. A realidade somente pode ser vista ou se revela pela sua própria ‘veracidade’ (Satya, um dos cinco princípios ou Yamas do Yoga Sutras).
É importante, pois, entender que a história de vida de cada indivíduo e a memória de cada pessoa, dependem de algo para existir, dependem de circunstâncias e eventos exteriores; em suma, dependem de outros para a construírem para nós mesmos.
Quando a consciência identifica-se com essas narrativas, coisas que vêm de fora e ocupam lugar na mente e preenchem a consciência, é porque concedemos a elas um sentido e um significado que nos permitem afirmar “isso é meu” e “eu sou isso”.
A confusão da consciência com a mente, do qual surge o “falso Si-mesmo” - o ego - se dá pelas lembranças e identificações. Os diálogos internos, expressão maior do ego, se reverberam na consciência, e levantam um ‘véu de ilusões’ (mãyã), entre o real e o aparente. Aparência é tudo aquilo que não tem existência própria, é tudo o que depende de algo para existir; é fantasia e falsidade.
Enquanto o ego se forja pelo movimento da mente, e se expande pela força do ruído exterior, a consciência, para aflorar, exige quietude e silêncio. O yoga nos propicia a quietude e o silêncio de que necessitamos para que a consciência transpareça em toda a sua resplandecência. Mas como se dá a experiência do silêncio no yoga?
O yoga nos ensina que, entre um pensamento e outro, naquele breve intervalo – microssegundos – é possível experienciar o espaço da presença, onde não há ruídos ou movimentos, onde a voz do ego não ecoa, porém, há apenas a serenidade perfeita do imanifesto. A sutil percepção desse espaço já é o suficiente para "encontrarmos a nós mesmos".
É nesse espaço de presença que 'cessam as identificações com os conteúdos da mente’ (chitta-vritti-nirodha) – liberando-nos das amarras das narrativas e lembranças. Essa presença é o Si-Mesmo (Atman), isto é, a ‘consciência pura’ (Cinmaya), que está separada do ego e suas narrativas, e por ele não se afeta. Quando se alcança tal realização, a isto denomina-se kaivalya ou 'desapego perfeito' - liberdade.
O “caminho da meditação” (dhyana marga), nos leva a essa realização. Yoga é meditação. E meditar é observar com atenção a mente, desnudando-a para o advento da transformação interior. Logo, a observação atenta do “comentador interno”, é o caminho que nos leva de volta à essência, ou seja, o retorno à consciência pura.
O yoga, portanto, resgata aquilo que somos. Aquilo que você pensa que é, o “comentador interno”, é apenas a mente egóica, alvoroços do ego; você, em verdade e realidade, é aquilo que observa a mente – você não é a mente e sua tagarelice. Você é a testemunha (shaksi), consciência pura, sem qualquer envolvimento com o ego e o que dele possa decorrer.
Interessante é o fato que, em nosso cotidiano, observamos o ego o tempo todo, mas não o percebemos como impostor, pois estamos envolvidos com e por ele; não percebemos o movimento da mente, e entronizamos o ego como se ele fosse o Si-mesmo.
Afinal, quem ou o quê está ciente da história e da memória? Quem ou o quê está ciente do corpo, das sensações, das emoções, pensamentos, sentimentos e identificações? Quem pode, de fato, observar tudo, sem ser enredado? Apenas a consciência pura possui esse poder.
O ego somente pode ser percebido e observado pela consciência pura, pois ele é um objeto da mente; como objeto da mente, ele não pode ser visto pela mente, que não se vê a si mesma, a não ser por um espelho (pode o olho ver o próprio olho?).
Podemos dizer que, para a mente, a consciência é como um espelho; pois, quando na meditação, emerge a consciência, a mente se vê e o ego revela-se em toda a sua falsidade. É quando o castelo de cartas da mente egóica, desmorona, e a verdade e a realidade se revelam. Isto é o despertar da consciência, prenúncio da Iluminação Espiritual.
Portanto, história e memória, como objetos da mente, são passíveis de serem percebidos diretamente pela consciência pura, ilimitada e infinita em recursos; e o “comentador interno” pode ser observado atentamente em sua constituição frágil, ilusória e impermanente, desvendado em sua farsa.
Assim, a história e memória, elementos que dão contornos e coloridos à nossa vida, podem ser apuradas pelo yoga. E não haverá “bolhas de informação” que resistam à lâmina afiada da autoinvestigação (Atma-vichara).
Yoga: estude, pratique, viva.
Hari Om Tat Sat.
Ouviu-se que o sábio abomina todos os apegos. Ele tem autocontrole perfeito, pois está sempre ocupado na transformação da mente. Ele permanece constante no caminho da meditação (dhyãnamãrga). O sábio nunca desvia a consciência do Brahman supremo.
(Sivapurana 2.3.8)
Para saber mais:
CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.
HALBWACHS, Maurice. Os quadros sociais da memória. Joinville: Clube dos Autores, 2023.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.
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