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O SEQUESTRO PELA NATUREZA E O RESGATE PELO YOGA

  • Foto do escritor: Marcelo Augusti
    Marcelo Augusti
  • 7 de mai.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 12 de mai.

Quase tudo que ganhei na vida, gastei com mulheres, bebida e jogos; o restante, desperdicei.

(George Best)


George Best, um norte-irlandês, foi um futebolista de muito sucesso, considerado como um dos maiores de sua profissão. Premiado como o melhor jogador de 1968, aos 22 anos, ele foi o principal responsável por levar o Manchester United a vencer o campeonato europeu, façanha até então inédita para um clube de futebol inglês.


O sobrenome de George confirmava o seu talento indiscutível. Conhecido como o “rockstar” do futebol, apelidado de “O Quinto Beatle”, a vida de Best fora do campo, entretanto, não foi tão gloriosa quanto as conquistas em sua carreira futebolística.


Segundo relatos, logo após a grande façanha do Manchester, ainda no chuveiro do vestiário, George sentiu-se deprimido, devido a um pensamento que lhe ocorreu na ocasião: será que um dia viverei algo grandioso assim novamente?


E a vida de Best se transformou. Entregou-se à esbórnia: bebidas, jogatinas e mulheres – era assim que George consumia os seus dias de fama. Em um documentário sobre a sua vida (George Best: al by himself), produzido em 2016, o próprio jogador afirmava, segundo trechos de entrevistas:


Uma vez que a diversão do futebol não existia mais, eu comecei a procurar alternativas para substituir a emoção que sentia com o futebol. (...) Eu acho que eu me acostumei tanto a ser o número um, que fiquei com medo que não conseguisse mais ser o número um.

 

George Best, o melhor, o astro, sucumbiu à vida desregrada. Em 25 de novembro de 2005, aos 59 anos, ele deu seu último suspiro. Um jornal inglês, que anunciou a morte do jogador, deu a seguinte definição sobre a vida de Best: 


O garoto de Belfast que veio para o Manchester United com mágica nos pés e um botão de autodestruição na alma, morreu um pouco antes das 13h de hoje.

 

George Best viveu inegavelmente a vida do corpo em sua máxima intensidade. Ele se entregou aos prazeres “proibidos” do corpo. Não negou ao corpo nada que ele desejasse. Best foi indulgente com todos os desejos do corpo.


O que aconteceu com George Best é o que acontece com quase todos nós, não na mesma proporção ou intensidade, necessariamente: o sequestro pela natureza. Sim, pois a natureza pode sequestrar a consciência, mediante o uso do corpo.


Mas não há nada de errado em proporcionar prazer ao corpo. O corpo é natureza, e natureza é a busca por satisfação. E como tal, o corpo preza pela sua sobrevivência e instintos. Ele tem hábitos: é assim que o corpo vive. Assim é a vida do corpo. Mas essa não precisa ser a vida no corpo.


Logo, não há nada de errado com o corpo e seus anseios, que isso fique bem claro. Nada de pecados, transgressões ou coisas do tipo devem ser imputadas ao corpo. O corpo apenas quer o melhor para si: mais saúde, mais alegria, mais prazer, abundância.


O corpo é a fonte dos prazeres sensoriais. E não é tarefa fácil dominar os sentidos, ou seja, manter o controle sobre as portas de entrada do prazer. O desejo de querer mais e mais prazer, entretanto, por vezes se torna o único objetivo da vida. Torna-se um vício. Afinal, “raros são aqueles que não saboreiam os prazeres passados, nem anseiam pelos prazeres futuros” (Ashtavakra Gita, 17.4).


O corpo é o elemento biológico que nos constitui como “animais humanos”. Ele é guiado pela mente, sua consorte, o elemento psíquico. As funções psicobiológicas do corpo/mente são reguladas por substâncias químicas denominadas hormônios. O termo “hormônio” significa “pôr em movimento, impelir”.


Os hormônios são indispensáveis para ativar e regular os diversos processos naturais do corpo. Eles também são responsáveis por um processo cíclico, que qualquer pessoa conhece, por experiência própria: “repetir aquilo que satisfaz”.


Os “hormônios da felicidade e do prazer”, por exemplo, como são denominados a ocitocina, a serotonina, a dopamina e a endorfina, são ativados até mesmo pelas lembranças das experiências ou eventos ligados à sensação de prazer.


Entretanto, o mesmo é válido para os “hormônios da tristeza”, como o cortisol. Este hormônio, quando em alta na corrente sanguínea, associado a níveis reduzidos de serotonina e dopamina, provocam estresse, desânimo, descontentamento e até levam à depressão.


Interessante observar que “aquilo que satisfaz”, nem sempre está relacionado diretamente ao prazer. A recorrência de experiências dolorosas, sejam físicas ou emocionais, acionam, do mesmo modo, o ciclo psicobiológico dos hormônios, até mesmo, como dito, quando elas nos vem à lembrança.


Assim, quando fazemos algo que nos dá prazer ou provoca dor, isso fica registrado na memória, deixando um rastro hormonal. Quanto mais repetimos o que fazemos e, principalmente, nos identificamos com as sensações e sentimentos derivados dessas experiências, prazerosas ou dolorosas, mais somos impelidos a repetir o evento, seja física ou mentalmente, pois eles nos dão um suporte psicobiológico – ainda que equivocado – de que “isso sou eu”.


Portanto, uma vez ativados, os hormônios cumprirão a sua função, ou seja, impulsionar o corpo a ação em direção à satisfação sensorial e emocional do prazer ou da dor. E pouco há o que se fazer, uma vez que sejam ativados.


Assim, ou reprimimos violentamente a ação, de forma enérgica, consciente ou inconscientemente, expondo o corpo à tensão psicológica, gerando ansiedade, angústia e explosões emocionais que nos levam a uma infinidade de problemas de saúde física e mental; ou acatamos indulgentemente a ação, correndo o sério risco de perder o controle e sujeitar-se a situações que podem nos causar dependência psicofisiológica, que se expressa no desejo de reviver mais do mesmo.


Ao nos tornamos dependentes desses processos fisiológicos do corpo, nos tornamos “escravos” do prazer ou da dor, e a repetição acentuada do “quero mais”, muitas vezes transformará algo bonito e relevante, em algo vulgar, onde não se consegue mais ver a beleza e a importância da vida.


Esse fenômeno pode ser observado em relação à sexualidade, por exemplo. É certo que, ao longo da história da humanidade, o corpo foi tão banalizado e usado como forma de gratificação imediata, que a sexualidade, uma fonte sagrada de troca de energia espiritual entre os corpos de dois amantes, foi corrompida pela exploração e exposição acentuada do orgasmo.


Como nas palavras do escritor Milan Kundera, “o culto ao orgasmo, reduziu o coito a um obstáculo que é preciso ultrapassar o mais rápido possível, para chegar a uma explosão extática, único objetivo verdadeiro do amor e do universo”. Ele se referia à obsessão pela sexualidade e como esta se viu reduzida, unicamente, pela eficácia em alcançar o orgasmo o mais rapidamente possível.


Assim, a beleza e a dádiva do encontro sexual, para muitos, tornou-se uma maldição. Pois a busca pelo prazer a todo custo, nem sempre gera prazer, mas dor emocional. Seja pelo “corpo de prazer” ou pelo “corpo de dor”, somos enredados pela natureza, pelo simples fato de não nos atentarmos ao modo como ela age sobre nós, e como somos impelidos à recorrência.


Mais uma vez, que fique claro, a natureza não é a nossa adversária; muito pelo contrário, ela é a nossa aliada. Temos que aprender com ela. Por isso, a chamamos, carinhosamente, Mãe. Ela é a nossa provedora. Porém, precisamos conhece-la para que ela não seja um obstáculo ou se torne uma "madrasta malvada", mas uma fonte de satisfação genuína com a vida.


O “sequestro pela natureza”, portanto, é quando corpo/mente, limitados pela própria natureza, algo relativo e passageiro, são vistos como algo absolutos e definitivos; é quando delegamos ao corpo/mente o sentido de “eu sou isso”, com toda a bagagem de prazer e dor que eles acumulam em suas recorrências. É assim que a natureza, pelo corpo/mente, sequestra a consciência.


O impacto desse sequestro em nosso comportamento é implacável, seduzindo-nos ao ponto de desistirmos de exercer a própria autonomia individual, tal é a força exercida pelo poder psicobiológico coercitivo da natureza.


Se permitirmos, a natureza controlará o corpo/mente em todo o tempo que temos disponível na vida. O sequestro do corpo/mente é, ao mesmo tempo, o sequestro pelas emoções, pelos sentimentos e pelos pensamentos.


Mas que fique bem claro novamente: os hormônios não são os vilões, e a natureza é nossa aliada. Os hormônios são fundamentais para as funções orgânicas e saúde do corpo; e a natureza provém tudo o que necessitamos para manter a vida. O corpo em si não é o problema a enfrentar. Não temos que lutar contra ele ou contra a natureza.


Não sofremos por causa do corpo ou dos hormônios. O que nos faz sofrer é estar submetidos à natureza, pelo desconhecimento de sua inconstância e fugacidade, e mais do que isso, por não saber como fazer dela a nossa inspiração, uma ponte para uma conexão com algo mais elevado. Pois ninguém nasceu para sofrer; sofremos por ignorância e apego às nossas sensações, emoções e pensamentos.


Sequestrar significa “tornar prisioneiro, privar da liberdade”. O sequestro causa danos e exige resgate. Alguns significados de resgatar são “livrar da ruína ou de um estado de sensação ruim ou doentia, restabelecer”.


Um comentário de Iqbal Kishen Taimni sobre o Pratyabhijñâ Hridayam, considerado como uma das obras-primas da literatura espiritualista, diz:

 

A alma individual com seu conhecimento extremamente limitado e ilusório é mencionada como mâyapramâtâ. Esta expressão significa "um conhecedor cujo conhecimento é limitado e prejudicado por Mãyã ou ilusão". A limitação do conhecimento é tão devastadora que a alma individual, cuja consciência é essencialmente una com a Consciência Universal e, portanto, abrange todo o universo, torna-se a alma individual comum e passa a correr atrás de toda espécie de coisas inconstantes no mundo para satisfazer sua fome de felicidade (I.K. Taimni, O Segredo da Autorrealização)

 


O corpo não é a essência constitutiva dos seres. Ele é uma manifestação passageira de algo que o transcende. Ele é uma realidade aparente, dentre tantas, do Ser Cósmico primordial, Purusha.


Como realidade aparente, o corpo, como já dito, é limitado. Ele é apenas uma fração daquilo que somos. Os versos do Rig Veda, escritos há mais de três mil anos, afirmam sobre a essência dos seres criados:


Purusha (o Espírito Universal) é maior que tudo. Todas as criaturas são um quarto dele, três quartos são aquilo que é imortal e divino. Três quartos subiu ao alto; um quarto dele se espalhou em todas as direções, permanecendo em tudo o que existe (Rig Veda, 10. 90).


Quando a consciência torna-se centralizada no corpo e identifica-se a si mesmo com ele, ela se enreda e se aprisiona na natureza; ela passa a viver a vida do corpo, quando deveria viver uma vida no corpo. Entretanto, essa identificação não é real, como já dito, é uma ilusão.


Pois a consciência individual é “um quarto do espírito imortal e divino”, enquanto o corpo/mente é apenas uma manifestação da natureza, finito e terreno. É por esta razão que é possível, pela prática do yoga, liberar a consciência de sua identificação com o corpo e, assim, ter o controle sobre a natureza.


O yoga nos alerta, todavia, que o controle da consciência sobre a natureza, por mais que se esforce, não será pleno. Pois a relação de envolvimento da consciência com a natureza, limita o alcance do conhecimento e o poder da consciência.


Esta limitação é devido à força de Mãyã, a ilusão primordial, que priva a consciência da percepção total de sua essência (“espírito imortal e divino”), envolvendo-a em sua aparência enganosa, o corpo/mente e, consequentemente, enredando-a no mundo fenomênico, sequestrando-a pelas ilusões do prazer e da dor.


O yoga nos exorta a atentar ao preceito upanishádico, atmanam viddhi, "conhece a ti mesmo". Pela prática na meditação, abstraindo-se das sensações e emoções, podemos alcançar esse conhecimento, indo além do corpo, além da mente.


Sente-se em silêncio, permaneça quieto. Observe, atenta e desinteressadamente, o movimento da natureza no corpo e na mente. Quando ela se manifestar, “pegue-a no pulo”.


Mas seja gentil com ela, não lhe repreenda, nem seja indulgente; apenas permita a sua manifestação espontânea, pois assim como surge, ela desaparece. Isso é próprio da natureza. Apenas permaneça como testemunha.


Pois o sentido do “eu sou isso”, pertence ao corpo/mente. Quando vamos além, algo se revela por detrás; algo infinito, divino e bem-aventurado, que se apossa de nós, sem que saibamos como explicar. É então, que encontramos “a verdadeira luz que ilumina todo ser que vem ao mundo”.


É esta realidade que preenche a consciência; já não existem mais preferências ou aversões, satisfação ou insatisfação que impeçam que ela veja a si mesma, que seja a si mesma. A natureza, o corpo - o prazer e a dor - já não podem mais atuar como elementos que perturbam a "paz interior".


Yoga é o resgate da consciência, a sua salvaguarda; é liberdade e imortalidade.


Estude, pratique.


Hari Om Tat Sat.

 

Aquele que encontra a quietude não é distraído nem focado. Ele não conhece prazer nem dor. Com a ignorância dissipada, ele é livre de todo condicionamento da natureza.

(Pratyabhijñâ Hridayam, 18.10)

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